O Nacionalismo Cristão Norte-Americano e Sua Influência no Projeto de Lei 1904 no Brasil

 


O recente projeto de lei 1904, que tem gerado grande indignação no Brasil, não é um fato isolado, mas parte de uma longa cadeia de eventos que segue um modelo específico do nacionalismo cristão norte-americano. Esse movimento tem raízes profundas, datando de pelo menos 25 a 30 anos, e tem como objetivo adaptar e submeter o mundo moderno aos preceitos bíblicos, ao contrário do que fez a Igreja Católica no século XX, que buscou adaptar a Bíblia aos tempos modernos.

Uma prova concreta dessa ideologia emergente foi apresentada recentemente em uma entrevista na GloboNews. Confrontado pela jornalista Júlia Duailib com pesquisas que mostravam a rejeição da população brasileira, especialmente das mulheres, ao projeto de lei 1904, o deputado Cezinha Madureira respondeu que sua pesquisa mais precisa estava na Bíblia. Esse incidente ilustra a intenção de estabelecer uma ordem política teonômica no Brasil, onde a estrutura política, social, cultural e educacional segue necessariamente a palavra de Deus conforme interpretada por essa visão específica do Antigo Testamento.

Para entender melhor o que está acontecendo no Brasil, é essencial voltar ao que aconteceu nos Estados Unidos em 1980. Naquele ano, Jimmy Carter, um presidente democrata e evangélico, candidatou-se à reeleição. Carter era conhecido por seu caráter íntegro e fé profunda, interrompendo o trabalho várias vezes ao dia para orar e sempre proclamando a importância dos ensinamentos de Jesus Cristo em sua vida pessoal e pública. No entanto, o nacionalismo cristão americano se organizou para derrotar Carter, apoiando Ronald Reagan, um republicano. Esse apoio marcou uma mudança definitiva na política americana e abriu caminho para a ascensão de Donald Trump décadas depois.

Foi nesse contexto que os evangélicos americanos criaram a "New Christian Right" (Nova Direita Cristã). Esse movimento recusava decididamente o caráter laico do Estado e apoiou Ronald Reagan com o objetivo de influenciar e transformar a cultura e a política americana. Em 1982, Gary North, um economista brilhante, escreveu um ensaio fundamental para compreender essa mudança. Ele argumentava que os cristãos deveriam ingressar na política para transformar a ordem social, tornando-a teonômica, ou seja, adaptando as leis da república aos ditames do Antigo Testamento.

A teologia do domínio, que sustenta essa ideologia, baseia-se em uma interpretação específica do Gênesis 1:28, onde Deus abençoa o homem e a mulher, dizendo-lhes para crescer, multiplicar-se e dominar a Terra. Os nacionalistas cristãos interpretam isso como uma ordem para transformar a república em uma ordem política baseada na lei bíblica. Gary North foi claro ao afirmar que os cristãos deveriam usar a doutrina da liberdade religiosa para ganhar tempo e treinar uma geração de nacionalistas cristãos que, ao se tornarem maioria, imporiam a lei de Deus.

Essa estratégia envolve uma abordagem de longo prazo, utilizando a versão humanista da liberdade religiosa para ganhar tempo até que possam reconstruir o mundo conforme a lei bíblica em todas as esferas da vida. A nova ordem social, segundo North, retornaria à doutrina da liberdade cristã estabelecida no Antigo Testamento e na Constituição republicana dos Estados Unidos anterior a 1865, antes do fim da escravidão. Essa visão é baseada em uma leitura deturpada do texto bíblico, como no Gênesis 1:28, onde se destaca a ideia de domínio após o crescimento e multiplicação.

Hoje, no Brasil, estamos vivenciando um movimento semelhante. Líderes religiosos influentes, como Silas Malafaia, Michelle Bolsonaro e Nicolas Ferreira, adotam ideias da teologia do domínio e do nacionalismo cristão. Eles repetem, quase literalmente, as mesmas proposições defendidas por Gary North e outros líderes da Nova Direita Cristã nos Estados Unidos. Esse contexto nos alerta para a necessidade de compreender as profundas raízes e as implicações de longo prazo desse movimento, que visa transformar a ordem política e social brasileira em uma teocracia baseada nos ditames do Antigo Testamento.

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